sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Memória e aprendizado na visão do neurocientista Iván Izquierdo


Embora estudos científicos tenham avançado, somos um país no qual a escola ainda não foi apresentada à


ciência.  Isso traz complicações econômicas, uma vez que todas as nações desenvolvidas no mundo hoje


são produtoras de alta tecnologia e, portanto, centros de excelência científica.




Este é o alerta de um dos principais cientistas em atividade no Brasil, que, no entanto – e talvez faça sentido


neste contexto – não é brasileiro. O médico neurocientista Iván Antonio Izquierdo nasceu em Buenos Aires,


capital argentina, em 1937.




Adotou o Brasil para desenvolver estudos científicos a partir de 1973, anos depois de ter se graduado


médico e concluído o doutorado em Farmacologia em Buenos Aires. “Eram apenas três ou quatro grupos


que desenvolviam neurociência no Brasil àquela época.


Hoje já existe uma Sociedade Brasileira para a Neurociência com 4 mil membros, todos produzindo pes­qui­


sas”, afirma, de sua casa, em Porto Alegre, nesta entrevista por telefone a Carta Fundamental.




 O neurocientista desenvolveu a maior parte de seus estudos no Departamento de Bioquímica da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e, atualmente, coordena estudos na Pontifícia


Universidade Católica (PUC), de Porto Alegre. É reconhecido no mundo todo por seus mais de 500 artigos


científicos, e também escreveu 16 livros, a maior parte deles de cunho científico, há também contos e


crônicas.




Nesta conversa, Izquierdo fala de como funciona a memória e comenta o momento atual da ciência no


Brasil.  CartaFundamental: O senhor afirma, em seu livro Memória, que sem esquecimento não há


memória, que é preciso esquecer para lembrar. Como funciona essa relação?

Iván Izquierdo: Funciona de maneira física. Temos muitas células para a memória, que se forma nelas a


partir de processos metabólicos. O número de moléculas é finito. Uma vez que se usa essas moléculas de


forma exaustiva, esse número terá de se repor. Isso está muito bem definido pelo (escritor argentino) Jorge


Luis Borges, no conto Funes, o Memorioso. Nesse conto, Borges fala da história do personagem Funes,


que desenvolve uma memória perfeita. Ele era capaz de lembrar um dia inteiro de sua vida, do primeiro ao


último segundo – só que, para isso, também levava outro dia inteiro para se lembrar. Borges demonstra por


meio do absurdo que, para raciocinar, precisamos esquecer para notar diferenças, classificar as coisas. É


impossível pensar sem esquecer um pouco.




CF: Hoje já não se discute que aprendemos por associação. Para aprender a ler, por exemplo, é


preciso adquirir “o gosto pela leitura”. Somos capazes de aprender algo que não nos atrai?

II: A forma ideal de uma criança aprender é tentar estimulá-la por algo que a atraia mesmo. Ela pode


aprender, claro, se esforçando para entender algo que não goste, mas é normal do ser humano focar-se no


que gosta. É por isso que os professores têm de ter consciência disso e se preparar.




CF: Portanto, a memória que se formará com o aprendizado será maior ou menor, dependendo da


atenção que o professor der àquilo que está sendo ensinado?

II: Isso de fato é um peso na hora de ensinar, mas também é fundamental a capacidade de aprender da


criança. A maneira como o ensino é administrado também faz diferença.




CF: Os mecanismos de aquisição, conservação e evocação da memória das crianças são diferentes


dos de um adulto?

II: A partir dos 5 ou 6 anos de idade, quando as crianças passam a usar a linguagem, o mecanismo de


memória é basicamente o mesmo dos adultos, com diferenças muito pequenas. Até aí, porém, não. A


memória do início da infância funciona diferente, é mais parecida com a dos animais. A linguística faz toda


diferença na concepção da memória.




CF: Convencionou-se dizer hoje em dia que vivemos em uma época de excessos de informação, e


que as gerações mais novas convivem com isso praticamente desde que nascem. Esse excesso é


um problema para a memória?

II: Há um senão nessa afirmação. O famoso médico Santiago Ramón y Carral, um dos fundadores da


neurociência, já alertava, em sua obra O Mundo Visto aos 80 Anos, para o mesmo problema. E estávamos


na década de 1920! Comentava que chegávamos ao fim do mundo por causa do excesso de informações.


Era o início do rádio, cinema e música em qualquer lugar. Nosso cérebro tem um sistema gerenciador de


informações que o faz selecionar o que é importante. O excesso hoje é o que nós percebemos como


excesso, mas, talvez ainda estejamos dentro das dimensões que o cérebro suporta. Desde que me conheço


por gente ouço isso, e não sei se é por aí.




CF: Na escola, incentivar a memória foi rotulado como “decoreba”. Como estimular a memória


corretamente sem cair na mera repetição pura e simples?

II: Olha, alguém um belo dia inventou que a decoreba é ruim. Então, diga-me: como vamos aprender um


poema ou a tabuada a não ser decorando? Evidentemente, isso faz parte do aprendizado. Decorar é colocar


coisa na memória, e estamos fazendo isso constantemente.




CF: O senhor já declarou que a educação científica deve começar pela escola. Qual a sua opinião


sobre a relação entre ciência e educação no Brasil?

II: Até há pouco, péssima, mas estamos começando a ter grandes avanços. O Brasil é um país que ainda


desconhece a existência da ciência. Por exemplo: sou médico, há pessoas que me chamam para resolver


problemas clínicos. Só que eu sou um médico neurocientista! Ninguém sabe que me dedico de forma


exclusiva à pesquisa. Mas as coisas estão mudando. Hoje em dia, sem ciência não há economia. A ciência


precisa da tecnologia, e a tecnologia precisa da ciência para ser produzida, e a definição de país


desenvolvido hoje passa também pela produção de ciência e tecnologia. Dois países que tinham o PIB e a


população parecidos há 20 anos eram a Coreia do Sul e o Brasil – a Coreia do Sul, hoje, é quase uma


potência científica, e o Brasil, não.




CF: Ao senhor parece, então, que a ciência não está arraigada na população do Brasil.

II: Sim, é isso. A ciência ainda é vista como algo estrangeiro, é até desprezada. E não, deve ser inerente à


sociedade de qualquer país.




CF: E o que pode estimulá-la na sociedade?

II: Primeiro, é necessário conhecer o que se faz de ciência no Brasil. Há várias fórmulas de fazê-lo.


Devemos criar programas em colégios através de meios que os alunos estão adaptados, ou seja, tevê e


internet. A Academia Brasileira de Ciências ficaria muito feliz em realizá-lo, assim como a Sociedade


Brasileira para o Progresso da Ciência. É o tipo de coisa que se deve fazer ainda no começo do Ensino


Fundamental. Também deve-se usar sempre exemplos do dia a dia, nos quais a ciência está presente. Por


exemplo: você abre a torneira, gira a válvula para a água passar. Isso é física. Tudo tem ciência, isso é uma


realidade.




CF: A ciência, a seu ver, ainda está longe da escola?

II: Sim, está. Há uma falta de cultura científica gigantesca nas escolas do Brasil, e isso vem de Portugal, que


foi o único país, no período colonial, que proibia criar universidades nas colônias. E nisso foram muito


diferentes dos ingleses e espanhóis, que criavam instituições de ensino onde podiam. Os espanhóis criaram


as primeiras universidades na América nos anos 1600. Aqui no Brasil, as primeiras surgiram somente no


século XX. Não sei se o Brasil incentiva a educação do jeito certo. Por exemplo: estamos criando muitas


universidades, mas nem todas são boas. Temos essa cultura da superficialidade que virou uma característica


nacional que não é interessante. Ciência se faz com aprofundamento.




CF: Em relação ao mundo acadêmico, o senhor enxerga melhoras?

II: Muito, e rapidamente em quase todos os setores das Ciências da Saúde, Biologia, Física e Matemática.


A neurociência teve um avanço grande. E estou falando em um aumento em qualidade da pesquisa e


quantidade de pesquisadores. Quando vim para fazer neurociência no Brasil em 1973, havia três ou quatro


grupos, literalmente. O Brasil já está bem colocado no mapa mundial da neurociência.




CF: A maior parte dos sites, revistas e jornais de informação tem, em sua editoria de ciências,


notícias bizarras. Isso pode atrair o interesse dos jovens para o assunto ou, simplesmente, os


afasta da ciência

II: Isso, lamentavelmente, é tão comum quanto infeliz. O tratamento superficial que prioriza o bizarro é


prejudicial à ciência. E falta muito preparo por parte dos jornalistas científicos. Muitas vezes vemos gente


que são muito bem- intencionadas, inteligentes, mas que até ontem estavam fazendo crônica de futebol. É


fundamental conhecê-la para interpretá-la.




CF: Existe algum exercício recomendável para manter a memória em forma?

II: A atividade útil para memória é qualquer uma que a faça usá-la muito, e isso sempre envolve a leitura. As


duas profissões em que se vê menos perda de memória com a idade (e que, quando o problema existe,


costuma ser menos profundo) são as dos professores e dos atores. Foram feitas estatísticas em populações


grandes sobre isso em vários lugares, mas os mais relevantes foram feitos em Paris e Buenos Aires. Não


tinha nada a ver com a classe social. Professor e ator usam muito a memória, têm de ler muito para ser


qualificados.




CF: E para encerrar, o que uma criança ou adolescente que sonham ser um cientista nunca podem


esquecer?

II: Um cientista tem de ser uma pessoa curiosa. Tem de gostar de investigar, procurar ver o que existe atrás


da parede. A profissão consiste nisso e, bem cultivado desde criança junto ao hábito da leitura, é


fundamental.




Matéria extraída na íntegra da Revista Carta Fundamental